Sobre Mank e manipulação

O texto a seguir aborda cenas e momentos específicos do filme Mank. Como alguns podem considerar tais momentos como spoilers, sugiro que assistam ao filme antes de ler.

Mank, dirigido por David Fincher, é um filme brincalhão. Muitos críticos atacaram a obra de Fincher, alegando que a linha argumentativa defendida a respeito da autoria de Cidadão Kane estava equivocada e ultrapassada. E, de fato, a tese de que Orson Welles não participou do processo de escrita do roteiro (cuja autoria é creditada à Pauline Kael, em seu livro Raising Kane) foi fortemente rebatida por Peter Bogdanovich, ao ponto em que a tese de Kael se tornou mundialmente rejeitada.

Porém...

O filme toma algumas decisões curiosas. Essa "mentira" sobre a falsa autoria de Welles não é a única "mentira" do filme. Vamos por partes:

  • No filme, Herman J. Mankiewicz é interpretado por Gary Oldman, que na época das filmagens tinha em torno de 61 anos. A intérprete de Marion Davies é Amanda Seyfried, que por sua vez tinha em torno de 34 anos. De acordo com fontes como o IMDb e a Wikipedia, Marion Davies nasceu em janeiro de 1897, enquanto Mank nasceu em novembro de 1897. Então, por que adulterar as idades? Pois na Hollywood Clássica, o par romântico do protagonista era comumente uma mulher bem mais nova que o ator principal.
  • Ao longo do filme, Mank comenta como o personagem Charles Foster Kane deve apresentar características desprezíveis de comportamento, mas ter algumas qualidades redentoras (o que era uma fórmula de sucesso em produções hollywoodianas). A metalinguagem se estabelece, portanto, de forma curiosa: o próprio Mank, como protagonista do filme, se encaixa em tal descrição. Ele é um alcoólatra que parece não se importar muito com a esposa e os filhos, ao mesmo tempo em que é um provocador intelectual que se opõe a figuras como Irving Thalberg e Louis B. Mayer.
  • Os personagens se comunicam quase que exclusivamente através de frases de efeito (um hollywoodês impecável, para falar a verdade).
  • Logo após a polêmica cena com Orson Welles (nos momentos finais do filme), quando Mank consegue o crédito pelo roteiro que escreveu, os personagens recebem a notícia de que o marido da datilógrafa Rita Alexander sobreviveu à queda do avião na guerra, o que é conveniente demais. Tudo naquele momento soa excessivamente como um clássico final feliz hollywoodiano. Ou seja, Fincher expõe a artificialidade de produções hollywoodianas ao mesmo tempo em que se entrega a ela.

Sem contar que vários textos afirmaram que Fincher fez escolhas equivocadas ao optar por rodar o filme na razão de aspecto 2.20:1, que não corresponde ao formato de quadro adotado para longas-metragens na década de 30 (época em que se passa a trama de Mank). Além do quê, a textura do preto e branco do filme de Fincher se assemelha mais a de obras como Roma (2018) e Eraserhead (1977) do que a de produções com a fotografia granulada da Época de Ouro de Hollywood.

Contudo, acredito que Fincher estava bastante ciente de suas decisões criativas. Ele não tem interesse em apenas simular o estilo de um filme de '30. O que ele quer mesmo é misturar as épocas.

Ele quer deixar claro que fez um filme sobre 1934 em 2020. Por quê?

Se repararmos na cena em que Mank e seus amigos roteiristas precisam apresentar uma ideia para David O. Selznick e Josef von Sternberg, o propósito dela é criticar a preguiça de Hollywood ao elaborar premissas de longas-metragens, onde o que vale é uma produção mais fácil e reciclada de ideias anteriores e que gere inúmeras sequências caça-níqueis.

Cenas como esta expõem que algumas práticas reprováveis de grandes estúdios existiam desde aquela época e permanecem vivas até hoje. Basta observar a maioria dos blockbusters dos últimos 20 anos.

Vale apontar, também, a subtrama envolvendo as eleições para decidir o governador da Califórnia. Em determinado momento, o personagem fictício Shelly Metcalf aceita dirigir um falso documentário que promoveria a eleição do republicano Frank Merriam, espalhando fake news sobre o democrata Upton Sinclair (sim, o mesmo que escreveu o livro Oil!, adaptado em 2007 para o cinema por Paul Thomas Anderson sob o título There Will Be Blood - ou Sangue Negro, como ficou conhecido no Brasil).

Ora, o filme nos mostra como o próprio conceito de fake news, termo que soa extremamente contemporâneo, já existia em 1934.

Todo esse contexto político aliado ao anacronismo formal de Fincher parece, portanto, querer comentar como práticas manipulatórias de grandes corporações (no caso, estúdios de cinema) e da mídia jornalística permanecem, desde a década de 30, vivas e presentes no cotidiano do povo.

E não deixa de ser curioso que Fincher tenha feito um filme que ataca os grandes estúdios, sendo que seu primeiro longa-metragem como diretor foi Alien 3, cuja produção foi extremamente conturbada, o que resultou na Fox tirando o filme das mãos de Fincher durante o processo de montagem e pós-produção.

Mas então, o filme ataca a prática de manipulação de informações, entretanto ele mesmo propaga uma informação falsa sobre Orson Welles... E é aí que volto a apontar: faz parte das brincadeiras de Mank.

Começando pelas escolhas de enquadramentos de Fincher, cuja direção neste longa é primorosa. Basta observar a cena em que Louis B. Mayer pede para os trabalhadores do estúdio aceitarem a redução de salário. Nela, Fincher posiciona seus atores em cena como se Mayer estivesse atuando diante de seus empregados, pois Mayer, de fato, está. Ele quer convencer os funcionários da mentira que está contando (por isso, parece que ele está em um palco diante de uma plateia).




David Fincher busca fazer uma crítica tão mordaz à capacidade de manipulação de informações da Sétima Arte, que ele mesmo se torna vítima do próprio ataque. Ao final de Mank, ele manipulou o espectador a pensar que Orson Welles é um vilão... Logo, só resta uma constatação máxima a ser feita sobre o filme: Mank é uma obra-prima sobre manipulação midiática...

...mas, acima de tudo, um filme brincalhão.


obs.: Há também a cena do primeiro diálogo entre Mank e Hearst, em que Fincher estabelece bem a relação de poder entre ambos. Hearst fica a cena inteira sentado em seu "carrinho", enquanto o roteirista deve andar para acompanhá-lo. Nota-se, também, que Mank precisa olhar para cima ao se dirigir a Hearst. Encenação simples, porém magistral.




Fontes:


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mememory

HUNTER AND PREY (a PREDATOR movie)